sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

10 coisas que devemos saber acerca da vontade de Deus


Existe uma razão pela qual eu disse “Vontade(s)” de Deus ao invés da “vontade” de Deus (singular). Meu objetivo, nesta súmula de 10 coisas que você deve saber, é a questão se há ou não dois sentidos em que Deus pode querer alguma coisa.

(1) A primeira coisa que devemos recordar é que, em um sentido, a “vontade” de Deus é irresistível e não pode ser frustrada ou finalmente subjugada. Vemos isso em textos como estes:

Bem sei que tudo podes, e nenhum dos teus planos pode ser frustrado (Jó 42.2).

Todos os moradores da terra são por ele reputados em nada; e, segundo a sua vontade, ele opera com o exército do céu e os moradores da terra; não há quem lhe possa deter a mão, nem lhe dizer: Que fazes? (Daniel 4.35).

No céu está o nosso Deus, e tudo faz como lhe agrada (Salmo 115.3; cf. Efésios 1.11).

(2) Também nos é dito que Deus “deseja” que todos sejam salvos (1 Timóteo 2.4) e que todos “cheguem ao arrependimento” (2 Pedro 3.9). Como coadunar essas afirmações aparentemente contraditórias? A resposta é encontrada em uma distinção entre a vontade preceptiva e a vontade decretiva de Deus.

Considere Êxodo 4.21-23 e o endurecimento do coração do Faraó. Deus, através de Moisés, ordenou que Faraó deixasse o povo partir. Essa é a vontade preceptiva de Deus, ou seja, sua vontade de preceito ou comando. É o que Deus alega que deve acontecer. Outros, porém, se referem a isso como a vontade revelada de Deus ou a sua vontade moral. No entanto, Deus também disse que endureceria o coração de Faraó para que ele se recusasse a deixar o povo partir. Essa é a vontade decretiva de Deus, isto é, sua vontade de decreto ou propósito. Isso é o que Deus ordenou que acontecesse. Também é chamada de vontade oculta, soberana ou eficiente. “Portanto, o que vemos [no Êxodo] é que Deus ordena que Faraó faça uma coisa que o próprio Deus não “permitiu”. A coisa boa que Deus ordenou é impedida. E a coisa que ele traz envolve o pecado” (John Piper, Existem duas vontades em Deus?, p. 114).

(3) A vontade decretiva de Deus refere-se ao propósito divino secreto e abrangente, segundo o qual prevalece tudo o que vier a acontecer. Sua vontade preceptiva, entretanto, se refere aos mandamentos e proibições nas Escrituras. Deve-se considerar o fato de que Deus pode decretar o que ele proibiu; ou seja, sua vontade decretiva pode ter ordenado que o evento x aconteça, enquanto que na Escritura a vontade preceptiva de Deus ordena que o evento x não aconteça. John Frame apresenta isso desta maneira:

“Às vezes a vontade de Deus é frustrada porque ele determina que seja, porquanto ele deu a uma de suas vontades primazia sobre a outra” (No Other God [“Não há outro Deus”], p. 113).

“Deus não tenciona executar tudo o que ele valoriza, mas nunca falha em realizar tudo o que planejou” (p. 113).

(4) A fim de apresenta-lo tão simples quanto possível, Deus está frequentemente satisfeito em ordenar o seu próprio descontentamento.

(5) Talvez o melhor exemplo dos dois sentidos em que Deus deseja algo seja encontrado em Atos 2.22-23 e 4.27-28. Aqui nós observamos que, em algum sentido, Deus “quis” entregar o seu Filho, enquanto que em outro sentido “não quis fazer isso” porque era algo pecaminoso para os seus algozes realizarem. Piper explica:

O desprezo de Herodes por Jesus (Lucas 23.11), a constituição fraca de Pilatos (Lucas 23.24), os judeus vociferando: “Crucifica-o! Crucifica-o!” (Lucas 23.21), e o escárnio dos soldados gentios (Lucas 23.36), também foram atitudes pecaminosas. Todavia, em Atos 4.27-28, Lucas expressa sua compreensão da soberania de Deus nestes atos, registrando a oração dos santos de Jerusalém:

… porque verdadeiramente se ajuntaram nesta cidade contra o teu santo Servo Jesus, ao qual ungiste, Herodes e Pôncio Pilatos, com gentios e gente de Israel, para fazerem tudo o que a tua mão e o teu propósito predeterminaram.

Herodes, Pilatos, os soldados e a multidão judaica levantaram suas mãos para se rebelarem contra o Altíssimo apenas para descobrir que a rebelião deles era um serviço involuntário (pecaminoso) nos desígnios inescrutáveis de Deus. Com efeito, sabemos que não foi a “vontade de Deus” que Judas, Pilatos, Herodes, os soldados gentios e a multidão judaica desobedecessem a lei moral de Deus, pecando ao entregar Jesus para ser crucificado. Mas também sabemos que foi a vontade de Deus que isso acontecesse. Portanto, sabemos que Deus, em certo sentido, exerce sua vontade, e em outro não (p. 111-112).

(6) O que Deus tem decretado eternamente que acontecerá pode ser o oposto do que ele diz na Escritura que deve ou não acontecer. É importante termos em mente que a nossa responsabilidade é obedecer a vontade revelada de Deus e não especular sobre o que está oculto. Raramente, como no caso da profecia preditiva, Deus nos revela sua vontade decretada. Exemplos de preceitos ou da vontade revelada de Deus compreendem Ezequiel 18.3; Mateus 6.10; 7.21; Efésios 5.17 e 1 Tessalonicenses 4.3. Alguns também colocariam nesta categoria 1 Timóteo 2.4 e 2 Pedro 3.9. Exemplos de decretos ou da vontade escondida de Deus incluem Tiago 4.15; 1 Coríntios 4.19 e Mateus 11.25-26.

(7) Outro exemplo deste princípio é encontrado em Apocalipse 17.16-17. Evidentemente, “travar uma guerra contra o Cordeiro é pecado, e o pecado é algo contrário à vontade de Deus. Não obstante o anjo diz (literalmente): Porque em seu coração incutiu Deus que realizem o seu pensamento, o executem a uma e deem à besta o reino que possuem, até que se cumpram as palavras de Deus. (v.17) Assim sendo, Deus quis (em um sentido) influenciar os corações dos dez reis para que fizessem o que é contrário à sua vontade (em outro sentido)” (Piper, p. 112).

(8) Em Deuteronômio 2.26-27, lemos acerca do pedido de Moisés para que os israelitas fossem autorizados a passar pela terra de Seom, rei de Hesbom. Isso teria sido uma coisa “boa” se o rei houvesse concedido. Destarte ele não o fez, porquanto o Senhor “endureceu o seu espírito e tornou seu coração obstinado” (Deuteronômio 2.30). Com efeito, vemos mais uma vez que, em um sentido, Deus “quis” que Seom respondesse de uma maneira que fosse contrária ao que Ele “quis” em outro sentido (isto é, que Israel fosse abençoado e não amaldiçoado).

O mesmo aconteceu com Josué, no capítulo 11.19-20, que nos diz que o Senhor “endureceu os corações” de todos os que estavam em Canaã para resistir a Israel, para que ele, o Senhor, os destruísse exatamente como havia dito.

(9) Outros casos são encontrados em Romanos 11.7-9, 31-32 e Marcos 4.11-12. No texto anterior, vemos que, “conquanto seja um mandamento de Deus que seu povo veja, ouça e responda com fé (Isaías 42.18), todavia Deus também tem suas razões para enviar, às vezes, um espírito de entorpecimento para que alguns não obedeçam aos seus mandamentos” (Piper, p. 115). De modo similar, “o ponto de Romanos 11.31 é que o endurecimento de Israel, por parte de Deus, não é um fim em si mesmo, mas é parte de um propósito salvador que alcançará todas as nações. Porém, em resumo, temos que dizer que a vontade de Deus é uma condição (dureza de coração) que ele ordena às pessoas se esforçarem contra (“Não endureçam seus corações” [Hebreus 3.8,15 e 4.7])” p. 116). No texto de Marcos, “Deus quer que prevaleça uma condição que ele considera como condenável. Sua vontade é que eles se voltem e sejam perdoados (Marcos 1.15); no entanto ele age de forma a restringir o cumprimento dessa vontade” (p. 115).

Em 1 Samuel 2.22-25, lemos sobre o mal dos filhos de Eli, o mal que era claramente contra a “vontade” de Deus. A “vontade” revelada de Deus é que ouvem a voz de seu pai e deixem o seu pecado. Decerto, somos informados de que a razão pela qual eles não obedeceram a Eli (e a Deus) foi porque “o Senhor quis matá-los.” Conforme observa Piper, “isso só faz sentido se o Senhor tivesse o direito e o poder de conter a desobediência deles – um direito e um poder que ele não queria usar. Por conseguinte, devemos afirmar que, em um sentido, Deus quis que os filhos de Eli continuassem a fazer o que ele lhes ordenara que não fizessem, desonrando o seu pai e cometendo imoralidade sexual.” (p. 117).

Outros exemplos semelhantes aos de 1 Samuel 2 são 2 Samuel 17.14; 1 Reis 12.9-15; Juízes 14.4 e Deuteronômio 29.2-4. Estes são todos os incidentes, entre muitos outros, que poderiam ser citados, onde Deus decide (“determina”) que o comportamento aconteça sendo que ele não ordenou (“não quer”) que acontecesse.

Outro exemplo ainda é encontrado em Gênesis 50.20. Lá, José diz a seus irmãos: Vós, na verdade, intentastes o mal contra mim; porém Deus o tornou em bem, para fazer, como vedes agora, que se conserve muita gente em vida. Wayne Grudem declara: “Aqui, a vontade revelada de Deus aos irmãos de José era que eles o amassem e não o roubassem, não o vendessem como escravo nem fizessem planos para matá-lo. Mas a vontade secreta de Deus era que, na desobediência dos irmãos de José, um bem maior seria feito quando o mesmo – tendo sido vendido como escravo no Egito – ganhasse autoridade sobre a terra para assim salvar sua família” (Teologia Sistemática, p. 215).

(10) Tradicionalmente, os arminianos contestam esta distinção entre as “duas vontades em Deus” quando se trata da questão da salvação individual. Particularmente, penso nas afirmações de 1 Timóteo 2.4 e 2 Pedro 3.9. No entanto, Grudem responde:

Em última análise, os arminianos também devem afirmar que Deus quer alguma coisa maior do que ele quer a salvação de todas as pessoas, pois, de fato, nem todos serão salvos. Os arminianos asseguram que a razão pela qual nem todos serão salvos é que Deus deseja preservar a livre vontade do homem mais do que ele deseja salvar a todos. Mas isso também não é fazer uma distinção em os dois aspectos da vontade de Deus? Por um lado, Deus deseja que todos sejam salvos (1 Timóteo 2.5-6; 2 Pedro 3.9). Por outro, ele quer preservar a escolha absolutamente livre dos homens. Com efeito, ele quer a segunda coisa mais do que a primeira. Mas isso significa que os arminianos também devem alegar que 1 Timóteo 2.5-6 e 2 Pedro 3.9 não dizem que Deus deseja a salvação de todos de uma maneira absoluta ou não qualificada; eles também devem afirmar que os versículos referem-se apenas a um tipo ou um aspecto da vontade de Deus (p. 684).

Tanto calvinistas como arminianos, portanto, devem sustentar que existe alguma coisa, além disso, que Deus considera mais importante do que salvar todos:

Teólogos reformados atestam que Deus considera sua própria glória mais importante do que salvar a todos, e que (de acordo com Romanos 9) a glória de Deus também é promovida pelo fato de que alguns não serão salvos. Os teólogos arminianos também declaram que alguma coisa, além disso, é mais importante para Deus do que a salvação de todos, a saber, a preservação do livre-arbítrio do homem. Destarte, em um sistema reformado, o maior valor de Deus é a sua própria glória, e em um sistema arminiano, o maior valor de Deus é a livre vontade do homem (Grudem, p. 684).



por Sam Storms
Fonte: Sam Storms enjoying 


Observação: O presente artigo é uma “reedição” publicada no site Sam Storms enjoying, no dia 26 de dezembro de 2016 de outro artigo similar do autor, chamado Are there two wills in God? (Existem duas vontades em Deus?), publicado no dia 29 de outubro de 2006, sendo traduzido por Marcos Medeiros e cedido ao site Monergismo como divulgador.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Como Deuteronômio 30:19-20 é explicado no Calvinismo?


“Os céus e a terra tomo, hoje, por testemunhas contra ti, que te propus a vida e a morte, a bênção e a maldição; escolhe, pois, a vida, para que vivas, tu e a tua descendência” (Dt 30.19)
A doutrina do livre-arbítrio não conta com nenhuma declaração explícita nas Escrituras. A expressão em si não ocorre na Bíblia e a busca por um sinônimo se revela igualmente vã. No entanto, várias passagens são apresentadas como prova ou evidência de que o homem tem um livre-arbítrio, as quais são mencionadas como desafios à posição calvinista. Em todas elas, porém, o livre arbítrio é presumido ou inferido, jamais expressado. O versículo acima é dos mais utilizados com o propósito de demonstrar que o homem tem um arbítrio livre e vamos analisar se ele apresenta alguma dificuldade ao sistema calvinista.


Onde está o problema?


Antes de mais nada, posto que o verso não traz o termo livre-arbítrio ou um equivalente, quem primeiro tem que explicá-lo são os que enxergam livre-arbítrio nele. Suponho que se aponte para o verbo “escolhe” para provar o livre-arbítrio. Mas escolha e livre-arbítrio não são exatamente a mesma coisa. Se são, podemos ir para casa, pois o calvinista não nega, pelo contrário, defende que o homem faz escolhas, que tais escolhas podem ser livres de coerção externas e que o mesmo é sempre responsável por elas. Para que o texto representasse de fato um problema para o calvinista, o mesmo teria que dizer que o homem é capaz de escolher igualmente entre a bênção e a maldição, entre a morte e a vida, além de sustentar essa escolha em suas implicações textuais. Mas ele diz exatamente o contrário.


O que o texto diz


O livro de Deuteronômio significa “repetição da lei” e é formado basicamente por quatro discursos de Moisés. No primeiro (Dt 1:1-4:43) Moisés relembra a história de rebeldia de Israel, no segundo (Dt 4:44-26:19) ele repassa a história da legislação dada a Israel, no terceiro (Dt 27:1-28:68) promulga solenemente a Lei e, finalmente, no quarto (Dt 29:1-30:20) Deus faz uma nova aliança com o povo. O verso em questão está no final do discurso e trata das consequências da obediência e da desobediência e apela para uma boa escolha por parte do povo. O mesmo deve ser interpretado à luz do contexto deuteronômico.


O que significa escolher a bênção e a vida? Significa cumprir a Lei: “Vê que proponho, hoje, a vida e o bem, a morte e o mal; se guardares o mandamento que hoje te ordeno, que ames o SENHOR, teu Deus, andes nos seus caminhos, e guardes os seus mandamentos, e os seus estatutos, e os seus juízos, então, viverás e te multiplicarás, e o SENHOR, teu Deus, te abençoará na terra à qual passas para possuí-la” (Dt 30.15–16). É uma escolha bem diferente levantar a mão no culto, no apelo após a pregação. A questão a ser feita, então, é se os judeus de outrora e os pecadores de hoje são capazes de viver e ser abençoados sob a condição de obediência irrestrita à Lei. A resposta, é um sonoro não. 


Vejamos o histórico do povo de Israel: “rebeldes fostes contra o SENHOR, desde o dia em que vos conheci” (Dt 9.24). O Senhor lamenta “quem dera que eles tivessem tal coração, que me temessem e guardassem em todo o tempo todos os meus mandamentos” (Dt 5.29). A verdade é que ninguém tem um coração assim, até que o Senhor lhe dê um, “porém o SENHOR não vos deu coração para entender, nem olhos para ver, nem ouvidos para ouvir, até ao dia de hoje” (Dt 29.4). Depende do Senhor o ter um novo coração, o abrir olhos e ouvidos. É verdade que o povo tinha uma escolha diante de si. Mas já não tinha sido capaz de cumprir os mandamentos no passado. E não o era no presente, conforme atesta Moisés, ao se despedir com as palavras “conheço a tua rebeldia e a tua dura cerviz. Pois, se, vivendo eu, ainda hoje, convosco, sois rebeldes contra o SENHOR, quanto mais depois da minha morte?” (Dt 31.27). Ele estava ecoando as palavras do próprio Deus, de que no futuro o povo não seria capaz de viver pela Lei: “este povo se levantará, e se prostituirá, indo após deuses estranhos na terra para cujo meio vai, e me deixará, e anulará a aliança que fiz com ele” (Dt 31.16).


O dever de cumprir a lei como condição para a prosperidade na terra forma um paradoxo com a incapacidade do povo de atender aos mandamentos do Senhor. Isso parece injusto às pessoas que presumem que dever implica poder. Mas o objetivo da Lei não é salvar, e sim revelar a natureza má do pecador e servir de testemunha contra ele: “Tomai este Livro da Lei e ponde-o ao lado da arca da Aliança do SENHOR, vosso Deus, para que ali esteja por testemunha contra ti” (Dt 31.26). A solução divina é a graça do Senhor, manifesta na segunda aliança, quando “o SENHOR, teu Deus, circuncidará o teu coração e o coração de tua descendência, para amares o SENHOR, teu Deus, de todo o coração e de toda a tua alma, para que vivas.” (Dt 30.6), o que posteriormente será melhor explicado pelos profetas Jeremias e Ezequiel e revelado completamente no Novo Testamento.


O calvinismo não vê dificuldade nesse texto porque ensina, de acordo com a Bíblia, que a Lei expressa o caráter santo de Deus e que se constitui no padrão de santidade que devemos cumprir. Crê, ainda de acordo com a Bíblia, que nenhum homem foi, é ou será capaz de cumprir de forma perfeita a Lei, e que por conta disso, estamos todos sob maldição. Não vemos a escolha de Dt 30:19 como mera faculdade, e sim como mandamento, ao qual estamos obrigados a despeito de nossa incapacidade. E que a solução para o dilema não se encontra no esforço humano em cumprir a Lei, mas na manifestação da graça por meio de Jesus, que de um lado cumpre a Lei vicariamente por nós, e de outro, nos dá um novo coração, capaz de amar a Deus e viver em santidade para glória dEle, “porque a lei foi dada por intermédio de Moisés; a graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo” (João 1.17).


por Clóvis Gonçalves
Fonte: http://www.cincosolas.com.br

domingo, 27 de novembro de 2016

A DIVINDADE E HUMILDADE DE CRISTO EM FILIPENSES 2


Por volta do ano de 62, em uma prisão na cidade de Roma, Paulo escreveu uma epístola à igreja da cidade de Filipos. A igreja tinha demonstrado grande cuidado para com ele, além das várias ofertas generosas que fizeram (Filipenses 4:10-20). Talvez por isto a epístola tenha um tom tão alegre, caracterizado principalmente pela frase “Regozijai-vos sempre no Senhor; outra vez digo, regozijai- vos” (Filipenses 4:4). Não poderia deixar de faltar também as várias exortações e conselhos dados pelo apóstolo aos cristãos de Filipos.

É em uma destas exortações que se encontra uma das declarações cristológicas mais importantes das Escrituras. Em algumas versões do texto, temos:

"Tende em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus, pois ele, subsistindo em forma de Deus, não julgou como usurpação o ser igual a Deus; antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido em figura humana, a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até a morte e morte de cruz." (Filipenses 2:5-8)

Outros textos no entanto trazem o seguinte:

"Tende em vós aquele sentimento que houve também em Cristo Jesus, o qual, subsistindo em forma de Deus, não considerou o ser igual a Deus coisa a que se devia aferrar, mas esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, tornando-se semelhante aos homens; e, achado na forma de homem, humilhou-se a si mesmo, tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz." (Filipenses 2:5-8)

As duas possíveis traduções têm alimentado várias discussões entre defensores da doutrina da Trindade e aqueles que a criticam. Afinal de contas, Jesus não queria se apegar à igualdade com Deus, ou Jesus não considerou a hipótese de usurpar a igualdade com Deus?

Analisaremos aqui como este texto é uma testemunha importante para a divindade de Cristo, independente de qual forma ele é traduzido. Veremos também como muitos críticos à doutrina da Trindade tentam diminuir a força deste texto.

Como entender a mensagem do texto


Muitas pessoas que negam a divindade de Cristo costumam adotar a tradução onde Jesus não teria considerado a hipótese de usurpar a igualdade com Deus. Isto por que, se Jesus é Deus, ele não precisaria usurpar uma igualdade com Deus. Ele já a teria. Por isto a sua linha de discussão aqui é defender a segunda tradução como tradução válida. Se ela for válida, então ele não precisa entender que o texto declara a divindade de Cristo. E assim, o crítico da doutrina da Trindade busca até tradutores trinitaristas que adotam esta tradução como forma de argumentação.

No entanto, estas pessoas não se dão conta de que mesmo esta tradução estabelece a divindade de Cristo. O fato de que tradutores trinitaristas também a adotam deveria ser um indício para eles de que a tradução não prejudica a doutrina da Trindade.

A variação de tradução do versículo 6 se deve principalmente à palavra ἁρπαγμός. Ela pode significar usurpar ou coisa a se apegar. Os dicionários nos trazem aquilo que é conhecido como significado não afetado de uma palavra, isto é, tudo que uma palavra pode significar. Isto não significa que quando a palavra é usada, ela possa ser substituída por qualquer definição encontrada no dicionário, muito menos que podemos escolher qualquer definição listada ali. O que vai definir o significado de uma palavra, dentre aqueles listados no dicionário, é o contexto. Assim, diante dos significados apresentados para ἁρπαγμός, qual deles de fato se encaixam no contexto?

Tudo irá depender de outra palavra presente no versículo: ὑπάρχω, que é traduzida por “subsistindo”. A palavra é um particípio, e como particípio ela pode estar sendo empregada aqui de duas formas possíveis: ela pode ser um particípio concessivo ou um particípio causal. O particípio concessivo indica que algo é feito “a despeito de” ou “embora” outra coisa aconteça. Neste caso, portanto, ὑπάρχω seria traduzido como “embora subsistindo ...” ou “apesar de existir ...”. O particípio causal, no entanto, informa a causa para que algo aconteça. A tradução de ὑπάρχω neste caso seria “por subsistir ... é que...”[1].

Sendo assim, temos duas traduções possíveis. Se ὑπάρχω for um particípio concessivo, o único significado que podemos escolher para ἁρπαγμός é coisa a se apegar. Nesta situação, Paulo estaria dizendo que Jesus mesmo sendo Deus e tendo o direito a toda glória, não se apegou à sua divindade. Ele abriu mão de toda a honra que lhe era devida para se tornar servo. Houve aqui uma concessão: Jesus se tornou servo mesmo sendo Deus. Esta é a tradução defendida por muitos trinitaristas e que muitos críticos da Trindade negam como válida.

Por outro lado, a segunda opção é possível se ὑπάρχω for um particípio causal. Para este caso, ἁρπαγμός significaria usurpação. E curiosamente aqui vemos o mesmo raciocínio que apresentamos no início desta seção. Paulo estaria dizendo que Jesus não pensou em usurpar a igualdade com Deus. Por quê? Por que ele já subsiste em forma de Deus. Aqui ὑπάρχω nos fornece os motivos para que Jesus não tenha feito esta consideração.

Assim, de uma forma ou de outra, a divindade de Cristo é proclamada por Paulo aqui. Ela pode ser aquilo a que Cristo não quis se apegar ou pode ser o motivo pelo qual Cristo não buscou uma usurpação. Mas será que podemos definir qual das duas traduções é melhor para este texto?

Para isto, precisamos entender melhor o contexto da passagem. Como já foi dito, o versículo 6 faz parte de uma exortação de Paulo aos filipenses. Ele desejava incentivar a unidade entre eles, como podemos ver pelos primeiros versículos:

Portanto, se há alguma exortação em Cristo, se alguma consolação de amor, se alguma comunhão do Espírito, se alguns entranháveis afetos e compaixões, completai o meu gozo, para que tenhais o mesmo modo de pensar, tendo o mesmo amor, o mesmo ânimo, pensando a mesma coisa; nada façais por contenda ou por vanglória, mas com humildade cada um considere os outros superiores a si mesmo; não olhe cada um somente para o que é seu, mas cada qual também para o que é dos outros. (Filipenses 2:1-4)

É um problema muito comum de nossos dias a questão dos “direitos iguais”. Todos nós queremos exigir nossos direitos sem nos preocupar com nossos deveres. E sempre que vemos algum semelhante sendo beneficiado de alguma forma, nós protestamos com base em nossa igualdade. “Somos todos iguais, temos que ter mesmos direitos!” É muito fácil perceber como este tipo de sentimento pode causar divisões em qualquer meio.

Provavelmente por isto Paulo faz esta exortação aqui. Nós todos somos salvos da mesma forma, somos todos igualmente irmãos e igualmente filhos adotivos de Deus. Mas não devemos nos apegar a esta igualdade na igreja, devemos considerar cada irmão superior a nós mesmos (versículo 4).

Este foi o mesmo sentimento que Jesus teve antes da Encarnação. Ele e o Pai eram iguais. Mas Cristo não se apegou a esta igualdade, exigindo seus direitos como muitos hoje em dia fazem. Ele se esvaziou e se tornou servo e obediente, ele considerou o Pai como superior. Há aqui um claro paralelo entre o que Cristo fez e o que Paulo gostaria que os filipenses fizessem. Se Jesus em nenhum momento foi igual ao Pai, então o paralelo criado por Paulo não serve como exemplo para o que está sendo discutido aqui.

É interessante como aqui uma simples letra faz uma enorme diferença no texto. O versículo 7 diz que Jesus se (εαυτον) esvaziou. Se a palavra usada fosse αυτον (ele), poderíamos entender que foi o Pai quem esvaziou o Filho. Mas o que Paulo diz para nós é que isto foi uma opção do próprio Cristo: ele se esvaziou de sua própria vontade, o que combina muito bem com uma exortação à humildade. Muitos críticos da Trindade também serão obrigados aqui a refletir melhor sobre a ênfase que possam dar a “o Filho de si mesmo nada pode fazer” de João 5:19: se ele não pode fazer nada de si mesmo, como ele pôde então se esvaziar? Não é melhor entender João 5:19 à luz de sua humilhação do que entendê-lo como uma declaração de inferioridade?

Temos aqui portanto uma exortação à humildade. É por este motivo que a tradução “não julgou como usurpação o ser igual a Deus”, embora possível, não poderia ser aplicada a este texto. Se considerássemos que Cristo é uma criatura, como muitos críticos da Trindade tentam alegar aqui, então não usurpar a igualdade com Deus seria um exemplo de obediência, não de humildade. De qualquer forma, nenhuma das sugestões apresentadas pelos críticos consegue se encaixar neste texto.

Negando a mensagem do texto


Há várias formas usadas pelos críticos da doutrina da Trindade, para diminuir o testemunho deste texto. Todos eles estão relacionados com a variedade de significados que as palavras presentes no texto podem ter.

A primeira palavra discutida é μορφή, que é traduzida por forma. O que é a forma de Deus? Alguns chamam a atenção para o fato de que a forma é muitas vezes aplicada à aparência física, como temos em Marcos 16:12:

Depois disso manifestou-se sob outra forma a dois deles que iam de caminho para o campo, (Marcos 16:12)

Também temos a mesma palavra aplicada a estátuas (como por exemplo em A vida de Flávio Josefo, 65), forma corporal (Jó 4:16 na LXX), aparições em visões (como em Antiguidades Judaicas de Flávio Josefo, 5, 213). Na filosofia, a palavra forma tinha amplo uso, e estava relacionado com a essência das coisas, como nos informa N.R. Champlin:

1. Nos escritos de Platão, a palavra grega eidos é um possível sinônimo para os universais (vide). Nesse caso, «forma», «ideia» e «universais» seriam meros sinônimos. Oferecemos um extenso artigo sobre os universais. A forma ou universal é aquela entidade perfeita, eterna e imutável, copiada pelos particulares, ou seja, pelos objetos e entidades terrenos, mas que encontram consubstanciação na realidade dos universais.
[...]
3. Aristóteles, em seu realismo moderado (o universal ou forma seria a realidade), não distinguia a forma do particular, exceto no caso de Deus, o Impulsionador Inabalável. Tudo o mais seria movido 
por esse impulsionador. Em um outro sentido, a palavra «forma» é usada para indicar o fator 
determinante intrínseco de qualquer ser. Quanto aos seres materiais, a forma é aquilo que especifica e determina as espécies diferentes. A forma seria mais real do que a matéria; mas, no caso dos objetos físicos, a forma não pode existir por si mesma, separada da matéria, pelo que seria menos real do que as substâncias individuais [2].

Com uma gama tão variada de significados, qual seria o melhor significado para forma aqui? É interessante observar que forma no versículo está sendo modificado por Deus. Seria adequado falar de uma aparência de Deus aqui?

Considerando que ὑπάρχω seja causal, temos que é por Jesus possuir a forma de Deus, que ele não buscou uma igualdade com Deus. Assim, para a tradução preferida dos críticos da doutrina da Trindade fazer sentido, o próprio fato de possuir a forma de Deus já confere a Cristo a igualdade com Deus. Dificilmente esta igualdade poderia ser obtida pelo simples fato de se ter uma “aparência de Deus”. Mas é muito simples perceber como ter essência divina confere esta mesma igualdade. O mesmo pode ser dito da primeira tradução: embora tendo a essência divina, Jesus não se apegou a ela. Traduzir forma por aparência aqui não faria muito sentido. Robertson faz aqui uma boa explicação da palavra:

Morphē significa os atributos essenciais como mostrado na forma. Em seu estado pré-encarnado, Cristo possuía os atributos de Deus e assim apareceu àqueles no céu que o viram. Aqui há uma clara declaração da deidade de Cristo por Paulo [3].

A segunda palavra discutida é ὑπάρχω. Alguns dicionários listam esta palavra como significando “começar, nascer, ser o iniciador, dar início”[4]. A conclusão aqui é que Jesus em algum momento passou a existir na forma de Deus. Para entendermos melhor como esta tradução não é possível, vamos verificar a importância do tempo verbal para um particípio, segundo Daniel B. Wallace:

O tempo da natureza verbal do particípio requer cuidadosa consideração. Em geral, os tempos se comportam da mesma forma que no indicativo. A única diferença é que agora o ponto de referência é o verbo principal, não o emissor. Assim, o tempo nos particípios é relativo (ou dependente), enquanto no indicativo, absoluto (ou independente). 
O particípio aoristo normalmente denota um tempo antecedente ao verbo principal. Mas se o verbo principal também for aoristo, esse particípio indicará tempo simultâneo. O particípio perfeito também indica tempo anterior. O particípio presente é usado durante o tempo simultâneo (Essa simultaneidade, porém, é frequentemente concebida, dependendo em particular do tempo do verbo principal). O particípio futuro denota tempo subsequente[5].

A palavra ὑπάρχω é um particípio presente, e como vimos, o particípio presente ocorre simultaneamente à ação do verbo principal, que no nosso caso é considerou. E ninguém poderia considerar alguma coisa ao mesmo tempo que nasce ou é criado.

Por outro lado, novamente empregando esta tradução em nosso contexto, dificilmente o fato de se nascer com aparência de Deus forneceria um motivo para não se usurpar a igualdade com Deus.

A terceira palavra discutida aqui é ἁρπαγμός, que já foi analisada quando explicamos a mensagem do texto, acima.

Percebe-se aqui que embora os críticos da doutrina da Trindade sugiram muitas formas diferentes de se traduzir estas palavras, obviamente eles não empregam estas sugestões dentro do contexto de Filipenses 2. Segundo eles, qual a mensagem que este texto nos transmite? Eles não conseguem empregar suas sugestões e ao mesmo tempo mostrar como este texto nos ensina a humildade. O texto é totalmente desfigurado simplesmente para se evitar que o texto considere Jesus como igual a Deus.

Conclusão


O texto de Filipenses 2 nos fornece uma grande exortação à humildade. Somos incentivados pelo próprio exemplo de nosso Senhor que, tendo direito a toda honra e toda glória, abriu mão disto para servir ao Pai e conseguir para nós a Salvação. Se o próprio Cristo fez tudo isto, por que não podemos fazer o mesmo?

Diante de tão maravilhosa mensagem, temos o primeiro exercício de humildade diante de nós, ao aceitarmos a mensagem do texto, não tentando impor nossos próprios conceitos sobre ela.

por Gustavo
Fonte: www.e-cristianismo.com.br

Notas

1. Mais sobre os particípios causais e concessivos pode ser lido em Wallace, Daniel B., Gramática Grega, Uma sintaxe exegética do Novo Testamento (Editora EBR), pág. 631, 632, 634 e 635.

2. N.R. Champlin, Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia (Editora Hagnos), Volume 2, página 805.

3. A. T. Robertson, Word Pictures in the New Testament, comentário de Filipenses 2:6.

4. Tais definições podem ser encontradas em Isidóro Pereira, S. J., Dicionário Grego-Português e Português-Grego, 5ª Edição; e no o Dicionário Grego do Novo Testamento de James Strong, anotado pela AMG, que faz parte do apêndice da Bíblia de Estudo Palavras-Chave Hebraico e Grego - Edições CPAD – 2011, pág. 2436.

5. Wallace, Daniel B., Gramática Grega, Uma sintaxe exegética do Novo Testamento (Editora EBR), pág. 614

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

YEHOSHUA OU JESUS?


Tem sido espalhado um panfleto que acusa o catolicismo (o Papa) de haver mudado o nome do Salvador YEHOSHUA para JESUS. Este último seria um deus pagão ou o Deus CAVALO. A alegação é totalmente falsa, pois após o exílio babilônico (587-538 a.C.) os judeus mesmos preferiram usar a forma breve JESHUA para designar os heróis do Antigo Testamento chamados YEHOSHUA: assim o sucessor de Moisés, que em português é dito Josué; assim também o Sumo Sacerdote que acompanhou Zorobabel na volta do exílio... Ora da forma hebraica JESHUA fez-se a grega IESOUS e a latina IESUS. Em tal procedimento não tomou parte a Igreja Católica. Tem-se propagado um panfleto intitulado “O NOME SAGRADO”, que alega ter sido ilicitamente trocado o nome de YEHOSHUA por JESUS, nome de uma divindade pagã.
A seguir, exporemos a tese do panfleto e procuraremos mostrar como é falsa.

1. O conteúdo do panfleto

Logo na primeira página lê-se:
"O vocábulo Jesus não se deriva de Yehoshua.
Fica portanto provado que a sacrílega mudança do nome sagrado de Yehoshua para Jesus é a maior fraude teológica desde que o mundo foi criado até hoje".

Na página 3 volta a acusação:
"Prezado amigo, há quase 1600 anos estávamos sendo enganados a respeito do Sagrado e Eterno Nome do nosso Salvador. Quase toda a humanidade crê que Jesus Cristo é o seu verdadeiro nome. Isto é a maior mentira que Satanás conseguiu introduzir na mente das pessoas. Veja você, este nome não é de origem hebraica, mas sim grega (IESOUS), latinizado para Jesus e posteriormente transformado em Jesus".

O panfleto propõe a seguinte etimologia:
"O nome de Jesus é de origem pagã e significa DEUS-CAVALO
(hebraico Ye = Deus e Sus = cavalo). E cavalo é igual a Besta
.

O mundo inteiro adora a "Besta" pensando estar adorando o Cordeiro de Deus. Vejam a assustadora matemática:

IESVS CHRISTVS FILII DEI
1 + 5 + 100 + 1 + 5 + 1 + 50 + 2 + 500 + 1 = 666

Não está você também, sem saber, adorando a BESTA?"

Dito isto, o autor do panfleto procura a causa do alegado fato:

"Quem adulterou e continua adulterando a verdade criminosamente? Porventura somos nós, uma minoria perseguida e odiada por todos por seu verdadeiro NOME? Poucos sabem que os exemplares da Bíblia que dispomos são traduções feitas a partir da Vulgata Latina e que no ano de 383 de nossa era um monge de nome Jerônimo, fiel cumpridor das ordens do Papa Dâmaso, da Igreja Católica romana, foi obrigado a fazer acréscimos, mudanças e correções - veja introdução à Bíblia - ed. Vozes".
"O nome de Jesus foi dado por Roma".

Refutação:

2. Que dizer?

Proporemos três observações.

2.1. O nome

O debate versa sobre um nome que ocorre não raro no Antigo Testamento sob duas formas: Yehoshua, modalidade anterior ao exílio (587-538 a.C.) e Yeshua, após o exílio. Por exemplo, o sumo sacerdote Jesus, filho de Josedec e companheiro de Zorobabel na restauração de Jerusalém, é mencionado como Yehoshua pelos profetas Ageu e Malaquias, e como Yeshua nos livros de Esdras e Neemias. Ainda: o nome de Josué, filho de Nun, é mencionado como Yehoshua nos livros do Êxodo, dos Números, do Deuteronômio, de Josué e dos Juízes, e como Yeshua em Neemias 8, 17.

A tradução grega do Antigo Testamento dita "dos LXX" usou a forma grega lesous proveniente de Yeshua. Isto explica que os autores do Novo Testamento, escrevendo em grego, tenham usado a forma lesous para designar o Salvador da humanidade.

Os manuscritos do Novo Testamento, desde os mais antigos, têm todos, e tão somente, a forma lesous, não há indício algum de mudança de nome do Salvador no século IV.

Vê-se assim quão infundadas são as alegações do panfleto, publicado pela Congregação das Testemunhas de Yehoshua. Além do mais, contêm incoerências e erros, que passamos a apontar.

2.2. Incoerências e Erros

O autor do panfleto afirma que o nome JESUS tem origem grega e pagã, mas vai buscar sua etimologia na língua hebraica, concluindo que significa "Deus Cavalo".

Essa etimologia é questionável, pois YE pode ser a abreviatura de [YAHWÉH], não, porém, a de ELOHIM (DEUS). A equação IESUS CHRISTUS FILII DEI = 666 não tem sentido, pois quer dizer JESUS CRISTO DO FILHO DE DEUS - o que nada significa; deveria ser IESUS CHRISTUS FILIUS DEI (JESUS CRISTO, O FILHO DE DEUS) - o que não dá o total 666. Na verdade ninguém adora a Besta quando adora Jesus Cristo.

2.3. São Jerônimo e a Bíblia

O autor insinua que foi Jerônimo, por ordem do Papa Dâmaso, quem alterou o nome do Salvador. Ora é de notar que Jerônimo é responsável apenas pelo texto latino da Bíblia, não pelo texto grego. Se, ao traduzir o texto sagrado para o latim, usou de certa liberdade (liberdade que compete ao tradutor se ele a julga necessária para dar maior clareza ao texto), nunca o fez de modo a descaracterizar o texto sagrado, alterando o seu sentido. É absolutamente falso dizer que o texto bíblico vernáculo é tradução da Vulgata Latina; temos várias traduções diretas dos originais gregos e hebraico, munidas de notas de rodapé que explicam os versículos mais difíceis.

3. Conclusão

O nome JESUS vem do hebraico YESHUA; não é devido a alguma modificação do texto bíblico. Significa YAHWÉH SALVA, e não DEUS CAVALO. Mais uma vez se evidencia como são superficiais ou mesmo tendenciosas as críticas de [falsos mestres] aos católicos; dir-se-ia que lhes interessa mais denegrir e combater a igreja católica do que procurar, de fato, a Verdade. Com panfletos de linguagem mal redigida e erros de português investem contra a Verdade. Será por amor a Cristo? As observações filológicas deste artigo foram extraídas do verbete lesous da autoria de Willhelm Foerster publicado no Grande Lessico del Nuovo Testamento organizado por G. Kittel e G. Friedrich, vol. IV, pp. 909-934.

MAIS UMA...

A Igreja Betel Remanescente tem propagado um panfleto que também tenta explanar o nome de JESUS. Eis os seus principais dizeres (sem retoques de grafia):


"EXPULSE O PAGANISMO DE SUA VIDA

A origem do nome do pai e do filho, é Emanuel Isaías 7:14; 8:8 Mateus 1:23.

Antigamente o nome não era Jesus Cristo e sim ZESVS CRISTVS, tendo ligação com Zeus, ou Júpiter para os romanos. Os gregos escreveram o nome IESOUS, que também foi formado por duas divindades pagãs: IO mais ZEUS = IO a amada de ZEUS. Porque tanto paganismo? Os bispos "romanos" fizeram isso para agradar os pagãos atraí-los para a "igreja de Roma". Sem falar que o famoso nome de Jesus em hebraico tem um significado blasfemo: Je = (Ye) = Deus e a palavra SUS = "cavalo", assim forma a palavra: Deus é cavalo. Lembre; Está escrito: "Foi-lhe dada boca que proferia arrogâncias e blasfêmias... E abriu a boca... para lhe difamar o NOME..." (Ap 13:5-6). ... Perguntamos: Qual é o "nome" adorado por todos, tanto católicos romanos, evangélicos, espíritas, pentecostais, saravás, etc...? Todos a uma voz invocam o falso nome, o nome Jesus que teve origem em deuses pagãos, agora se você for uma alma sincera leia na sua Bíblia Êxodo 23:13 e decida. Qual deles? O NOME SAGRADO EMANUEL, ou o "nome de outros deuses" contidos no nome de Jesus?"

Que dizer?

Para tais alegações vale a resposta já atrás explanada. O argumento decisivo é o dos manuscritos bíblicos e não bíblicos da antiguidade; nenhum dá margem às etimologias dos que ousam deturpar a Verdade. O nome JESUS é a forma aportuguesada correspondente ao nome hebraico YESHUA do Salvador. Os polemistas lançam muita areia nos olhos dos leitores desprevenidos, embora falem sem provar o que dizem, ou em total ignorância da matéria abordada.



Fonte: www.fimdafarsa.blogspot.com.br

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

“Livre-arbítrio” - Um guia para iniciantes


Antes da queda de Adão, o homem era sem pecado e capaz de não pecar. Pois, “viu Deus tudo quanto fizera, e eis que era muito bom” (Gênesis 1.31). Mas o homem também era capaz de pecar. Porque Deus disse: “no dia em que dela [da árvore] comeres, certamente morrerás”(Gênesis 2.17).

Assim que Adão caiu em pecado, a natureza humana foi profundamente alterada. Agora o homem era incapaz de não pecar. Na queda, a natureza humana perdeu a sua liberdade para não pecar.

Por que o homem é incapaz de não pecar? Porque após a queda “o que é nascido da carne é carne” (João 3.6), e “a inclinação da carne é inimizade contra Deus, pois não é sujeita à lei de Deus; na verdade, ela não pode ser, e aqueles que estão na carne não podem agradar a Deus”(Romanos 8.7-8, tradução minha). Ou, como Paulo diz em 1Coríntios 2.14: “Ora, o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque lhe são loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente”.

Observe o termo não pode que aparece duas vezes em Romanos 8.7-8 e outra vez em 1Coríntios 2.14. Esta é a natureza de todos os seres humanos quando nascemos — o que Paulo chama de “homem natural”, e Jesus chama de “nascido da carne”.

Rebelde demais para se submeter a Deus

Paulo diz que isso significa que nesta condição nós “não podemos agradar a Deus”, ou, dito de outra forma, “não somos capazes de não pecar”. A razão básica é que o homem natural prefere a sua própria autonomia e sua própria glória acima da soberania e da glória de Deus. Isto é o que Paulo intenciona quando diz: “a inclinação da carne é inimizade contra Deus, pois não é sujeita…”.

A submissão alegre à autoridade de Deus, e ao superior valor e beleza de Deus, é algo que não somos capazes de fazer. Isto não acontece porque somos impedidos de fazer o que gostaríamos. É porque nós preferimos a nossa própria autoridade, e estimamos o nosso próprio valor, acima de Deus. Não podemos preferir a Deus como extremamente valioso enquanto preferimos supremamente a nós mesmos.

A razão para esta preferência idólatra é que somos moralmente cegos para a glória de Cristo, de modo que não podemos valorizar a sua glória como superior à nossa. Satanás está empenhado para nos confirmar nesta preferência ofuscante. “O deus deste século cegou os entendimentos dos incrédulos, para que lhes não resplandeça a luz do evangelho da glória de Cristo”(2Coríntios 4.4). Assim, quando o homem natural olha para a glória de Deus, seja na natureza ou no evangelho, ele não vê beleza e valor supremos.

Para crermos, nós precisamos ver beleza

Esta é a razão fundamental pela qual o homem natural não pode crer em Cristo. Crer não é apenas afirmar a verdade sobre Jesus, mas também é ver a beleza e o valor de Jesus, de tal maneira que nós o recebemos como nosso tesouro supremo. A forma como Jesus expressou isso foi dizer: “Quem ama seu pai ou sua mãe mais do que a mim não é digno de mim; quem ama seu filho ou sua filha mais do que a mim não é digno de mim”(Mateus 10.37). Não existe uma relação salvífica com Jesus onde a fé não consiste em valorizar Jesus acima de seus mais queridos tesouros terrenos.

Onde esse despertamento para a glória e valor supremos de Jesus (chamado de “novo nascimento”) não aconteceu, o coração humano caído é incapaz de crer em Jesus. É por isso que Jesus disse aos que se opunham a ele: “Como podeis crer, vós os que aceitais glória uns dos outros e, contudo, não procurais a glória que vem do Deus único?” (João 5.44). Em outras palavras, você não pode crer em Jesus, enquanto você tem maior estima pela glória humana do que pela dele. Pois, crer é exatamente o oposto. Crer em Jesus significa recebê-lo como supremamente glorioso e valioso (João 1.12).

É por isso que o homem natural não pode agradar a Deus. Pois, ele não pode crer em Deus desta maneira. Ele não pode receber a Deus e seu Filho como extremamente valiosos. Mas a Bíblia diz: “sem fé é impossível agradar a Deus” (Hebreus 11.6). Ou, como Paulo diz, ainda mais enfaticamente, em Romanos 14.23: “tudo o que não provém de fé é pecado”.

A grande renovação por meio de Cristo

Portanto, a dura realidade é que os seres humanos, como nós nascemos — com uma comum natureza humana caída — não somos capazes de não pecar. Somos, como Paulo e Jesus afirmam: “escravos do pecado” (João 8.34; Romanos 6.20). O remédio para esta condição é a livre e soberana graça de Deus operando uma mudança na essência de nossa natureza caída.

Esta mudança miraculosa, comprada pelo sangue, operada pelo Espírito a partir da qual nós percebemos e preferimos é descrita de diversas formas no Novo Testamento. Por exemplo:

Deus iluminando nossos corações: “Porque Deus, que disse: Das trevas resplandecerá a luz, ele mesmo resplandeceu em nosso coração, para iluminação do conhecimento da glória de Deus, na face de Cristo”(2Coríntios 4.6).

Deus fazendo com que nasçamos de novo: “Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que, segundo a sua muita misericórdia, nos regenerou para uma viva esperança, mediante a ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos”(1Pedro 1.3).

Deus nos ressuscitando dentre os mortos: “Mas Deus, sendo rico em misericórdia, por causa do grande amor com que nos amou, e estando nós mortos em nossos delitos, nos deu vida juntamente com Cristo”(Efésios 2.4-5).

O dom divino do arrependimento: “que Deus lhes conceda não só o arrependimento para conhecerem plenamente a verdade, mas também o retorno à sensatez, livrando-se eles dos laços do diabo, tendo sido feitos cativos por ele para cumprirem a sua vontade”(2Timóteo 2.25-26).

O dom divino da fé: “Porque vos foi concedida a graça de padecerdes por Cristo e não somente de crerdes nele”(Filipenses 1.29).

O efeito dessa mudança miraculosa, operada Espírito é que nós já não somos cegos para a beleza e glória supremas de Cristo; já não preferimos a nossa própria autonomia em vez do governo soberano de Deus; já não amamos a criação de Deus mais do que o Criador; apegamo-nos a Cristo como extremamente valioso; nós confiamos em suas promessas; somos libertos da nossa escravidão à incredulidade e ao pecado, e finalmente, somos capazes de não pecar. “Porque o pecado não terá domínio sobre vós” (Romanos 6.14).

Uma definição de “livre-arbítrio”

Agora, onde o “livre-arbítrio” se encaixa nesta descrição bíblica da nossa condição no mundo?

Para responder a essa pergunta, precisamos de uma definição clara de “livre-arbítrio”. Pode ser útil oferecer três definições: Uma a partir do uso popular, uma a partir do uso bíblico comum e uma proveniente de uma discussão mais técnica.

Uma definição popular

Popularmente, o que a maioria das pessoas querem dizer quando perguntam sobre o livre-arbítrio? Eu penso que a maioria das pessoas quer dizer algo como isto: A nossa vontade é livre se as nossas preferências e nossas escolhas são realmente nossas, de tal forma que possamos ser justamente considerados responsáveis, sejam elas boas ou más. O oposto seria que as nossas preferências e escolhas não são nossas, mas que somos robôs ou fantoches não possuindo quaisquer atos significativos de preferência ou escolha.

Por essa definição, o livre-arbítrio existe tanto em seres humanos caídos quanto nos redimidos. Pois, o que a queda provocou não foi que deixamos de ser pessoas autênticas que preferem e escolhem, mas que a nossa rebelião nos inclina a preferir e escolher o mal. Todos preferem e escolhem de acordo com a sua natureza. Se a natureza é rebelde e insubordinada, como Paulo descreve em Romanos 8.7-8, nós preferimos e escolhemos de acordo com isso. Se a nossa natureza for libertada da rebelião, ela começa a preferir e escolher o que é verdadeiramente belo. Em ambos os casos, a nossa preferência e escolha é “nossa”, e somos “responsáveis” sejam elas boas ou más.

Uma definição bíblica

A segunda definição de livre-arbítrio, expressa na linguagem de Jesus e Paulo, é esta: A vontade humana é livre quando não está sob a escravidão de preferir e escolher irracionalmente. Ela é livre quando é libertada de preferir o que é infinitamente menos preferível do que Deus e de escolher o que levará à destruição. O oposto dessa visão seria que tais preferências e escolhas irracionais e suicidas devem ser chamadas de “liberdade”.

Com base nesta definição, somente aqueles que nasceram de novo têm livre-arbítrio. Esta é a forma que Jesus definiu a noção de liberdade em João 8.32: “conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”. E esta é a maneira como Paulo fala sobre liberdade em Romanos 6: “Mas graças a Deus porque, outrora, escravos do pecado, contudo, viestes a obedecer de coração à forma de doutrina a que fostes entregues; e, uma vez libertados do pecado, fostes feitos servos da justiça” (Romanos 6.17-18).

Uma definição técnica

A definição mais técnica de livre-arbítrio que algumas pessoas usam é esta: Nós temos livre-arbítrio, se em última instância ou decisivamente nos autodeterminamos, e as únicas preferências e escolhas pelas quais podemos ser responsabilizados são aqueles nas quais, finalmente ou decisivamente, nos autodeterminamos. A palavra-chave aqui é finalmente ou decisivamente. A questão não é apenas que as escolhas são autodeterminadas, mas que o eu é o final ou decisivo determinador de si mesmo. O oposto desta definição seria que Deus é o único ser que, em última análise, determina a si mesmo, e ele mesmo é, finalmente, o ordenador de todas as coisas, incluindo todas as escolhas, embora existam muitas ou diversas outras causas intervenientes.

Nesta definição, nenhum ser humano tem livre-arbítrio, em tempo algum. Em última análise, nem antes ou após a queda, ou no céu, as criaturas determinam a si mesmas. Há grandes níveis de autodeterminação, como a Bíblia evidencia frequentemente, mas o homem nunca é a causa final ou decisiva de suas preferências e escolhas. Quando a agência do homem e a agência de Deus são comparadas, ambas são reais, mas a de Deus é decisiva. Todavia — e aqui está o mistério que faz com que muitos tropecem — Deus é sempre decisivo de tal forma que a agência do homem é real, e a sua responsabilidade permanece.

Mas, isso não é inconcebível?

Eu digo que muitos tropeçam nisso porque eles o consideram como inconcebível. A minha perspectiva é que a Bíblia ensina a compatibilidade entre a decisiva soberania de Deus e a responsabilidade do homem. Se isso parece inconcebível para você, eu pediria que você não permita que isso o impeça de crer no que a Bíblia ensina.

Mas pode ser útil fazer uma tentativa de ajudar a dar sentido a isso. Os atos de uma pessoa podem ser justamente considerados louváveis ou condenáveis se eles fluem de uma natureza boa ou má que o inclina a apenas um caminho?

Aqui está parte da resposta de João Calvino a essa objeção:

A bondade de Deus é tão entrelaçada à sua divindade, que não é mais necessário ser Deus do que ser bom; enquanto que o diabo, por sua queda, tanto se alienou da bondade que nada pode fazer, senão o mal.

Se alguém mencionar a zombaria profana de que pouco louvor é devido a Deus por uma bondade a que ele é compelido, não é óbvio que cada homem responda: “Não é devido à forçosa compulsão, mas à sua bondade infinita, que ele não pode fazer o mal”?

Portanto, se o livre-arbítrio de Deus em fazer o bem não é impedido porque ele necessariamente deve fazer o bem; e se o diabo, que nada pode fazer, senão o mal, mesmo assim peca voluntariamente; pode ser dito que o homem peca menos voluntariamente, porque ele está sob uma necessidade de pecar? (Institutas, II.3.5).

Muito mais poderia ser dito. Questionamentos não faltam. Meu apelo é que você se concentre no verdadeiro ensino das Escrituras. Tente não levar pressupostos filosóficos ao texto (pressupostos como: a responsabilidade humana não pode coexistir com Deus decisivamente fazer “todas as coisas conforme o conselho da sua vontade”, Efésios 1.11). Deixe que a Bíblia fale plena e profundamente. Confie que um dia não veremos em espelho, obscuramente, mas face a face (1Coríntios 13.12).

por John Piper
Fonte: MinisterioFiel.com.br
Por: John Piper. © 2016 Desiring God. Original: A Beginner’s Guide to ‘Free Will’
Tradução: Camila Rebeca Almeida. Revisão: William Teixeira. © 2016 Ministério Fiel.