sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

10 coisas que devemos saber acerca da vontade de Deus


Existe uma razão pela qual eu disse “Vontade(s)” de Deus ao invés da “vontade” de Deus (singular). Meu objetivo, nesta súmula de 10 coisas que você deve saber, é a questão se há ou não dois sentidos em que Deus pode querer alguma coisa.

(1) A primeira coisa que devemos recordar é que, em um sentido, a “vontade” de Deus é irresistível e não pode ser frustrada ou finalmente subjugada. Vemos isso em textos como estes:

Bem sei que tudo podes, e nenhum dos teus planos pode ser frustrado (Jó 42.2).

Todos os moradores da terra são por ele reputados em nada; e, segundo a sua vontade, ele opera com o exército do céu e os moradores da terra; não há quem lhe possa deter a mão, nem lhe dizer: Que fazes? (Daniel 4.35).

No céu está o nosso Deus, e tudo faz como lhe agrada (Salmo 115.3; cf. Efésios 1.11).

(2) Também nos é dito que Deus “deseja” que todos sejam salvos (1 Timóteo 2.4) e que todos “cheguem ao arrependimento” (2 Pedro 3.9). Como coadunar essas afirmações aparentemente contraditórias? A resposta é encontrada em uma distinção entre a vontade preceptiva e a vontade decretiva de Deus.

Considere Êxodo 4.21-23 e o endurecimento do coração do Faraó. Deus, através de Moisés, ordenou que Faraó deixasse o povo partir. Essa é a vontade preceptiva de Deus, ou seja, sua vontade de preceito ou comando. É o que Deus alega que deve acontecer. Outros, porém, se referem a isso como a vontade revelada de Deus ou a sua vontade moral. No entanto, Deus também disse que endureceria o coração de Faraó para que ele se recusasse a deixar o povo partir. Essa é a vontade decretiva de Deus, isto é, sua vontade de decreto ou propósito. Isso é o que Deus ordenou que acontecesse. Também é chamada de vontade oculta, soberana ou eficiente. “Portanto, o que vemos [no Êxodo] é que Deus ordena que Faraó faça uma coisa que o próprio Deus não “permitiu”. A coisa boa que Deus ordenou é impedida. E a coisa que ele traz envolve o pecado” (John Piper, Existem duas vontades em Deus?, p. 114).

(3) A vontade decretiva de Deus refere-se ao propósito divino secreto e abrangente, segundo o qual prevalece tudo o que vier a acontecer. Sua vontade preceptiva, entretanto, se refere aos mandamentos e proibições nas Escrituras. Deve-se considerar o fato de que Deus pode decretar o que ele proibiu; ou seja, sua vontade decretiva pode ter ordenado que o evento x aconteça, enquanto que na Escritura a vontade preceptiva de Deus ordena que o evento x não aconteça. John Frame apresenta isso desta maneira:

“Às vezes a vontade de Deus é frustrada porque ele determina que seja, porquanto ele deu a uma de suas vontades primazia sobre a outra” (No Other God [“Não há outro Deus”], p. 113).

“Deus não tenciona executar tudo o que ele valoriza, mas nunca falha em realizar tudo o que planejou” (p. 113).

(4) A fim de apresenta-lo tão simples quanto possível, Deus está frequentemente satisfeito em ordenar o seu próprio descontentamento.

(5) Talvez o melhor exemplo dos dois sentidos em que Deus deseja algo seja encontrado em Atos 2.22-23 e 4.27-28. Aqui nós observamos que, em algum sentido, Deus “quis” entregar o seu Filho, enquanto que em outro sentido “não quis fazer isso” porque era algo pecaminoso para os seus algozes realizarem. Piper explica:

O desprezo de Herodes por Jesus (Lucas 23.11), a constituição fraca de Pilatos (Lucas 23.24), os judeus vociferando: “Crucifica-o! Crucifica-o!” (Lucas 23.21), e o escárnio dos soldados gentios (Lucas 23.36), também foram atitudes pecaminosas. Todavia, em Atos 4.27-28, Lucas expressa sua compreensão da soberania de Deus nestes atos, registrando a oração dos santos de Jerusalém:

… porque verdadeiramente se ajuntaram nesta cidade contra o teu santo Servo Jesus, ao qual ungiste, Herodes e Pôncio Pilatos, com gentios e gente de Israel, para fazerem tudo o que a tua mão e o teu propósito predeterminaram.

Herodes, Pilatos, os soldados e a multidão judaica levantaram suas mãos para se rebelarem contra o Altíssimo apenas para descobrir que a rebelião deles era um serviço involuntário (pecaminoso) nos desígnios inescrutáveis de Deus. Com efeito, sabemos que não foi a “vontade de Deus” que Judas, Pilatos, Herodes, os soldados gentios e a multidão judaica desobedecessem a lei moral de Deus, pecando ao entregar Jesus para ser crucificado. Mas também sabemos que foi a vontade de Deus que isso acontecesse. Portanto, sabemos que Deus, em certo sentido, exerce sua vontade, e em outro não (p. 111-112).

(6) O que Deus tem decretado eternamente que acontecerá pode ser o oposto do que ele diz na Escritura que deve ou não acontecer. É importante termos em mente que a nossa responsabilidade é obedecer a vontade revelada de Deus e não especular sobre o que está oculto. Raramente, como no caso da profecia preditiva, Deus nos revela sua vontade decretada. Exemplos de preceitos ou da vontade revelada de Deus compreendem Ezequiel 18.3; Mateus 6.10; 7.21; Efésios 5.17 e 1 Tessalonicenses 4.3. Alguns também colocariam nesta categoria 1 Timóteo 2.4 e 2 Pedro 3.9. Exemplos de decretos ou da vontade escondida de Deus incluem Tiago 4.15; 1 Coríntios 4.19 e Mateus 11.25-26.

(7) Outro exemplo deste princípio é encontrado em Apocalipse 17.16-17. Evidentemente, “travar uma guerra contra o Cordeiro é pecado, e o pecado é algo contrário à vontade de Deus. Não obstante o anjo diz (literalmente): Porque em seu coração incutiu Deus que realizem o seu pensamento, o executem a uma e deem à besta o reino que possuem, até que se cumpram as palavras de Deus. (v.17) Assim sendo, Deus quis (em um sentido) influenciar os corações dos dez reis para que fizessem o que é contrário à sua vontade (em outro sentido)” (Piper, p. 112).

(8) Em Deuteronômio 2.26-27, lemos acerca do pedido de Moisés para que os israelitas fossem autorizados a passar pela terra de Seom, rei de Hesbom. Isso teria sido uma coisa “boa” se o rei houvesse concedido. Destarte ele não o fez, porquanto o Senhor “endureceu o seu espírito e tornou seu coração obstinado” (Deuteronômio 2.30). Com efeito, vemos mais uma vez que, em um sentido, Deus “quis” que Seom respondesse de uma maneira que fosse contrária ao que Ele “quis” em outro sentido (isto é, que Israel fosse abençoado e não amaldiçoado).

O mesmo aconteceu com Josué, no capítulo 11.19-20, que nos diz que o Senhor “endureceu os corações” de todos os que estavam em Canaã para resistir a Israel, para que ele, o Senhor, os destruísse exatamente como havia dito.

(9) Outros casos são encontrados em Romanos 11.7-9, 31-32 e Marcos 4.11-12. No texto anterior, vemos que, “conquanto seja um mandamento de Deus que seu povo veja, ouça e responda com fé (Isaías 42.18), todavia Deus também tem suas razões para enviar, às vezes, um espírito de entorpecimento para que alguns não obedeçam aos seus mandamentos” (Piper, p. 115). De modo similar, “o ponto de Romanos 11.31 é que o endurecimento de Israel, por parte de Deus, não é um fim em si mesmo, mas é parte de um propósito salvador que alcançará todas as nações. Porém, em resumo, temos que dizer que a vontade de Deus é uma condição (dureza de coração) que ele ordena às pessoas se esforçarem contra (“Não endureçam seus corações” [Hebreus 3.8,15 e 4.7])” p. 116). No texto de Marcos, “Deus quer que prevaleça uma condição que ele considera como condenável. Sua vontade é que eles se voltem e sejam perdoados (Marcos 1.15); no entanto ele age de forma a restringir o cumprimento dessa vontade” (p. 115).

Em 1 Samuel 2.22-25, lemos sobre o mal dos filhos de Eli, o mal que era claramente contra a “vontade” de Deus. A “vontade” revelada de Deus é que ouvem a voz de seu pai e deixem o seu pecado. Decerto, somos informados de que a razão pela qual eles não obedeceram a Eli (e a Deus) foi porque “o Senhor quis matá-los.” Conforme observa Piper, “isso só faz sentido se o Senhor tivesse o direito e o poder de conter a desobediência deles – um direito e um poder que ele não queria usar. Por conseguinte, devemos afirmar que, em um sentido, Deus quis que os filhos de Eli continuassem a fazer o que ele lhes ordenara que não fizessem, desonrando o seu pai e cometendo imoralidade sexual.” (p. 117).

Outros exemplos semelhantes aos de 1 Samuel 2 são 2 Samuel 17.14; 1 Reis 12.9-15; Juízes 14.4 e Deuteronômio 29.2-4. Estes são todos os incidentes, entre muitos outros, que poderiam ser citados, onde Deus decide (“determina”) que o comportamento aconteça sendo que ele não ordenou (“não quer”) que acontecesse.

Outro exemplo ainda é encontrado em Gênesis 50.20. Lá, José diz a seus irmãos: Vós, na verdade, intentastes o mal contra mim; porém Deus o tornou em bem, para fazer, como vedes agora, que se conserve muita gente em vida. Wayne Grudem declara: “Aqui, a vontade revelada de Deus aos irmãos de José era que eles o amassem e não o roubassem, não o vendessem como escravo nem fizessem planos para matá-lo. Mas a vontade secreta de Deus era que, na desobediência dos irmãos de José, um bem maior seria feito quando o mesmo – tendo sido vendido como escravo no Egito – ganhasse autoridade sobre a terra para assim salvar sua família” (Teologia Sistemática, p. 215).

(10) Tradicionalmente, os arminianos contestam esta distinção entre as “duas vontades em Deus” quando se trata da questão da salvação individual. Particularmente, penso nas afirmações de 1 Timóteo 2.4 e 2 Pedro 3.9. No entanto, Grudem responde:

Em última análise, os arminianos também devem afirmar que Deus quer alguma coisa maior do que ele quer a salvação de todas as pessoas, pois, de fato, nem todos serão salvos. Os arminianos asseguram que a razão pela qual nem todos serão salvos é que Deus deseja preservar a livre vontade do homem mais do que ele deseja salvar a todos. Mas isso também não é fazer uma distinção em os dois aspectos da vontade de Deus? Por um lado, Deus deseja que todos sejam salvos (1 Timóteo 2.5-6; 2 Pedro 3.9). Por outro, ele quer preservar a escolha absolutamente livre dos homens. Com efeito, ele quer a segunda coisa mais do que a primeira. Mas isso significa que os arminianos também devem alegar que 1 Timóteo 2.5-6 e 2 Pedro 3.9 não dizem que Deus deseja a salvação de todos de uma maneira absoluta ou não qualificada; eles também devem afirmar que os versículos referem-se apenas a um tipo ou um aspecto da vontade de Deus (p. 684).

Tanto calvinistas como arminianos, portanto, devem sustentar que existe alguma coisa, além disso, que Deus considera mais importante do que salvar todos:

Teólogos reformados atestam que Deus considera sua própria glória mais importante do que salvar a todos, e que (de acordo com Romanos 9) a glória de Deus também é promovida pelo fato de que alguns não serão salvos. Os teólogos arminianos também declaram que alguma coisa, além disso, é mais importante para Deus do que a salvação de todos, a saber, a preservação do livre-arbítrio do homem. Destarte, em um sistema reformado, o maior valor de Deus é a sua própria glória, e em um sistema arminiano, o maior valor de Deus é a livre vontade do homem (Grudem, p. 684).



por Sam Storms
Fonte: Sam Storms enjoying 


Observação: O presente artigo é uma “reedição” publicada no site Sam Storms enjoying, no dia 26 de dezembro de 2016 de outro artigo similar do autor, chamado Are there two wills in God? (Existem duas vontades em Deus?), publicado no dia 29 de outubro de 2006, sendo traduzido por Marcos Medeiros e cedido ao site Monergismo como divulgador.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Como Deuteronômio 30:19-20 é explicado no Calvinismo?


“Os céus e a terra tomo, hoje, por testemunhas contra ti, que te propus a vida e a morte, a bênção e a maldição; escolhe, pois, a vida, para que vivas, tu e a tua descendência” (Dt 30.19)
A doutrina do livre-arbítrio não conta com nenhuma declaração explícita nas Escrituras. A expressão em si não ocorre na Bíblia e a busca por um sinônimo se revela igualmente vã. No entanto, várias passagens são apresentadas como prova ou evidência de que o homem tem um livre-arbítrio, as quais são mencionadas como desafios à posição calvinista. Em todas elas, porém, o livre arbítrio é presumido ou inferido, jamais expressado. O versículo acima é dos mais utilizados com o propósito de demonstrar que o homem tem um arbítrio livre e vamos analisar se ele apresenta alguma dificuldade ao sistema calvinista.


Onde está o problema?


Antes de mais nada, posto que o verso não traz o termo livre-arbítrio ou um equivalente, quem primeiro tem que explicá-lo são os que enxergam livre-arbítrio nele. Suponho que se aponte para o verbo “escolhe” para provar o livre-arbítrio. Mas escolha e livre-arbítrio não são exatamente a mesma coisa. Se são, podemos ir para casa, pois o calvinista não nega, pelo contrário, defende que o homem faz escolhas, que tais escolhas podem ser livres de coerção externas e que o mesmo é sempre responsável por elas. Para que o texto representasse de fato um problema para o calvinista, o mesmo teria que dizer que o homem é capaz de escolher igualmente entre a bênção e a maldição, entre a morte e a vida, além de sustentar essa escolha em suas implicações textuais. Mas ele diz exatamente o contrário.


O que o texto diz


O livro de Deuteronômio significa “repetição da lei” e é formado basicamente por quatro discursos de Moisés. No primeiro (Dt 1:1-4:43) Moisés relembra a história de rebeldia de Israel, no segundo (Dt 4:44-26:19) ele repassa a história da legislação dada a Israel, no terceiro (Dt 27:1-28:68) promulga solenemente a Lei e, finalmente, no quarto (Dt 29:1-30:20) Deus faz uma nova aliança com o povo. O verso em questão está no final do discurso e trata das consequências da obediência e da desobediência e apela para uma boa escolha por parte do povo. O mesmo deve ser interpretado à luz do contexto deuteronômico.


O que significa escolher a bênção e a vida? Significa cumprir a Lei: “Vê que proponho, hoje, a vida e o bem, a morte e o mal; se guardares o mandamento que hoje te ordeno, que ames o SENHOR, teu Deus, andes nos seus caminhos, e guardes os seus mandamentos, e os seus estatutos, e os seus juízos, então, viverás e te multiplicarás, e o SENHOR, teu Deus, te abençoará na terra à qual passas para possuí-la” (Dt 30.15–16). É uma escolha bem diferente levantar a mão no culto, no apelo após a pregação. A questão a ser feita, então, é se os judeus de outrora e os pecadores de hoje são capazes de viver e ser abençoados sob a condição de obediência irrestrita à Lei. A resposta, é um sonoro não. 


Vejamos o histórico do povo de Israel: “rebeldes fostes contra o SENHOR, desde o dia em que vos conheci” (Dt 9.24). O Senhor lamenta “quem dera que eles tivessem tal coração, que me temessem e guardassem em todo o tempo todos os meus mandamentos” (Dt 5.29). A verdade é que ninguém tem um coração assim, até que o Senhor lhe dê um, “porém o SENHOR não vos deu coração para entender, nem olhos para ver, nem ouvidos para ouvir, até ao dia de hoje” (Dt 29.4). Depende do Senhor o ter um novo coração, o abrir olhos e ouvidos. É verdade que o povo tinha uma escolha diante de si. Mas já não tinha sido capaz de cumprir os mandamentos no passado. E não o era no presente, conforme atesta Moisés, ao se despedir com as palavras “conheço a tua rebeldia e a tua dura cerviz. Pois, se, vivendo eu, ainda hoje, convosco, sois rebeldes contra o SENHOR, quanto mais depois da minha morte?” (Dt 31.27). Ele estava ecoando as palavras do próprio Deus, de que no futuro o povo não seria capaz de viver pela Lei: “este povo se levantará, e se prostituirá, indo após deuses estranhos na terra para cujo meio vai, e me deixará, e anulará a aliança que fiz com ele” (Dt 31.16).


O dever de cumprir a lei como condição para a prosperidade na terra forma um paradoxo com a incapacidade do povo de atender aos mandamentos do Senhor. Isso parece injusto às pessoas que presumem que dever implica poder. Mas o objetivo da Lei não é salvar, e sim revelar a natureza má do pecador e servir de testemunha contra ele: “Tomai este Livro da Lei e ponde-o ao lado da arca da Aliança do SENHOR, vosso Deus, para que ali esteja por testemunha contra ti” (Dt 31.26). A solução divina é a graça do Senhor, manifesta na segunda aliança, quando “o SENHOR, teu Deus, circuncidará o teu coração e o coração de tua descendência, para amares o SENHOR, teu Deus, de todo o coração e de toda a tua alma, para que vivas.” (Dt 30.6), o que posteriormente será melhor explicado pelos profetas Jeremias e Ezequiel e revelado completamente no Novo Testamento.


O calvinismo não vê dificuldade nesse texto porque ensina, de acordo com a Bíblia, que a Lei expressa o caráter santo de Deus e que se constitui no padrão de santidade que devemos cumprir. Crê, ainda de acordo com a Bíblia, que nenhum homem foi, é ou será capaz de cumprir de forma perfeita a Lei, e que por conta disso, estamos todos sob maldição. Não vemos a escolha de Dt 30:19 como mera faculdade, e sim como mandamento, ao qual estamos obrigados a despeito de nossa incapacidade. E que a solução para o dilema não se encontra no esforço humano em cumprir a Lei, mas na manifestação da graça por meio de Jesus, que de um lado cumpre a Lei vicariamente por nós, e de outro, nos dá um novo coração, capaz de amar a Deus e viver em santidade para glória dEle, “porque a lei foi dada por intermédio de Moisés; a graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo” (João 1.17).


por Clóvis Gonçalves
Fonte: http://www.cincosolas.com.br